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Julie & Julia – de comédia não tem nada.

Título Original: Julie & Julia
País/Ano: USA, 2009
Duração: 123min
Gênero: Comédia
Roteiro/Direção: Nora Ephron (adaptação e direção), Julie Powell (Julie & Julia), Julia Child e Alex Prud’Homme (My Life in France)
Elenco:
Meryl Streep, Amy Adams, Stanley Tucci, Chris Messina, Linda Emond, Jane Lynch.

Comédias nunca me agradaram. Talvez porque das existentes, ou elas trazem um humor baixo que se torna irritante ou um humor coerente que dificilmente é o suficiente para nos fazer rir. Ou talvez seja algum problema comigo, já me peguei várias vezes em silêncio com todo o resto da sala de cinema rindo. Mas, de qualquer jeito, a comédia de Julie & Julia chega longe de ser engraçada.

Realmente, eu me pergunto o porque do filme ter sido classificado no gênero comédia. As únicas risadas que conseguiram me arrancar foram quando Julie tenta rechear um frango e ele se espatifa no chão, e algumas outras que nem por roteiro foram, mas sim pelas expressões de Meryl Streep no papel de Julia.

Na verdade, é Julia que se torna realmente interessante durante o filme. A história gira em torno de duas personagens, Julie Powell e Julia Child. Child, que inicia um curso culinário renomado e um livro de receitas e Powell, cinqüenta anos depois, que estabelece uma meta para si mesma: fazer todas as receitas contidas no livro da Julia, Mastering The Art of French Cooking, em um ano. Enquanto Julie se mostra uma personagem insossa, que só não chega a um extremo porque te entretém com receitas e dificuldades para fazê-las e alguns contratempos ou novidades de sua vida, é Julia que rouba a cena. Agraciada com uma maravilhosa atuação de Meryl Streep, é claro, a história da personagem é muito mais interessante do que a da outra. Os problemas com a criação do livro, conflitos entre as três escritoras, o progresso no curso e até mesmo a atriz contribuem para que Julia Child seja melhor que Julie Powell.

Não que o problema seja Amy Adams, que interpreta Julie. Pelo contrário, Adams vem se mostrando uma grande atriz e desde o início de sua carreira cinematográfica, em 1999, já recebeu duas indicações ao Oscar. Apenas teve o infortúnio de ficar com uma personagem não muito satisfatória. Além dessas duas grandes atrizes, o filme conta com a presença de Stanley Tucci (Um Olhar do Paraíso, O Diabo Veste Prada) no papel do marido de Child, Paul, e da não tão famosa, mas ótima Jane Lynch (Outro Conto da Nova Cinderela), como a irmã de Julia, Dorothy.

Mas o filme não é ruim em todos os pontos. Na trilha sonora, por exemplo, consegue ir espetacularmente bem. Contando com músicas como A Bushel and a Peck (Doris Day), Le Festin (Camille – também presente em Ratatouille) e Time Aftes Time (Margaret Whiting) encerrando, consegue conquistar só pelas músicas, que se adaptam tão bem ao filme quando Meryl Streep. O restante da trilha sonora foi composta por Alexandre Desplat, que também foi contratado para fazer a da Relíquias da Morte – Parte 1. Se ele repetir a dose em Harry Potter, não teremos motivo para decepção.

Além da trilha sonora, o filme também agradou em outros quesitos. A diretora, que não é muito experiente, também escreveu o roteiro, e conseguiu ir tão bem quanto fora em A Feiticeira em 2005. Adaptou dois livros diferentes – Julie & Julia e My Life in France – perfeitamente em uma obra só, e mesmo sem ter lido ambos posso dizer que Ephron fez um ótimo trabalho, tendo o filme ficado diferente dos livros ou não.

Lembrando de uma coisa: se você estiver pagando alguma promessa de ficar meses sem doces, estiver no meio de uma dieta rigorosa ou com uma fome enorme e sem nada na geladeira, não veja o filme. A quantidade de comida entre as cenas é tão grande que te dará água na boca e uma vontade insaciável de comer boeuf bourguignon. Julie & Julie é baseado em duas histórias reais, uma da mulher que ensinou a América a cozinhar e a outra de uma mulher frustrada na vida que tenta seguir seus passos. Se quiser dar uma olhada no blog original escrito por Julie Powell em 2004, confira aqui, em inglês. Só mais uma coisa a dizer: Bon Appetit!

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Dúvida

Título Original: Doubt
Ano de Lançamento: 2009
Direção: John Patrick Shanley
Roteiro: John Patrick Shanley
Elenco: Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams
Duração: 104 minutos
País de Origem: EUA

Existem alguns atores e atrizes em quem eu confio cegamente, como Kate Winslet, Sean Penn, Glória Pires (vide a crítica de Lula, O Filho do Brasil), e alguns outros. Tais indivíduos tem o poder de me fazer esgueirar por qualquer cinema, sala de estar, bingo, quarto ou chão que me permitam presenciar sua atuação. Em absolutamente qualquer trabalho, essas pessoas conseguem cativar (de novo, vide a crítica de Lula).

E aí, no topo de todos esses (junto com Fernanda Montenegro, mas isso é outra história), está Meryl Streep. Mesmo no muito mais ou menos Julie e Julia, ou no péssimo Mamma Mia!, Meryl rouba a cena em absolutamente todos os momentos em que aparece. Em números, é indicada ao Oscar, muito merecidamente, por aproximadamente 37% dos seus trabalhos e esse ano conseguiu ganhar de si mesma no Globo de Ouro: foi indicada duas vezes na mesma categoria.

Então, eu comecei a ver Dúvida sabendo que, mesmo que não gostasse do filme, a oportunidade de ver Meryl atuando, por si só, pagaria o “tempo perdido” – e, devo dizer, que delícia que é quando esse pensamento se transformou no “Uau!” que eu carreguei quando o filme acabou. Não é um só filme bom: é um filme espetacularmente trabalhado, em cada um dos atores e seus personagens, em cada uma das muitas de suas nuances.

O filme se passa numa escola católica da qual a freira interpretada por Streep é a diretora. Inicialmente, três imagens são construídas: a da Irmã Alouysius Beauvier, diretora, extremamente rígida e tradicional, que defende o respeito incondicional que os estudantes tem de ter pelas professoras-freiras (mesmo que, como a própria personagem ressalta, esse respeito seja fundado no medo); o Padre Brendan Flynn (Philip Seymour Hoffman, também ótimo), um dos padres da cúpula da escola, à qual responde a Irmã Beauvier, em nome do grupo de freiras, um homem bondoso, que prefere criar amizades com seus alunos à aterrorizá-los, que defende que a escola deveria adequar-se a ideais mais liberais; e a Irmã James, apenas uma discípula da diretora, muito calma, boa, idealista, que fica dividida entre os ideais da Irmã e do Padre.

E aí o filme traz uma cidade de 1964, onde escolas católicas rígidas ainda eram muitíssimo respeitadas, mas exatamente a época, bem traduzida pelo conflito dos dois personagens principais, em que a sociedade começava a questionar o tradicionalismo, e põe em cheque a credibilidade de tudo aquilo.

Quando o roteiro se estabelece, aparece o perturbador da paz, o aluno negro Donald Miller. Veja bem, no contexto da época, um aluno negro (o primeiro da escola), era um grande atrevimento da diretora. Brancos não gostavam de negros, e ponto. Existia a previsão de que ele não se adaptaria. Não faria amigos. Se envolveria em brigas, seria um saco de pancadas. Então há a instrução para que irmã James, professora do menino, mantenha um olho nele.

Sabe-se que o Padre Flynn protege o menino de seus colegas, e um dia, ele o chama à sua sala durante a aula e o menino volta com hálito alcoólico. No dia seguinte, a professora vê o padre colocar uma camisa dentro do armário de Donald, discretamente.

Não existem provas. Não existem testemunhas. A Irmã Alouysius Beauvier, porém, tem certeza de que o menino está sendo abusado. E ela não tem receio de enfrentá-lo.

Questionando não só valores religiosos e morais, mas também coisas como a impunidade com que a cúpula católica cobre seus padres criminosos, mulheres que resolvem afirmar-se como seres pensantes, questões raciais e, enfim, muitas dessas questões que ainda enfrentamos hoje, o filme provoca de toda maneira possível. A conversa da diretora com a mãe do aluno provavelmente abusado ilustra isso – e é uma das melhores cenas do filme. E se o menino gostar do homem? E se for a única opção dele? E se ele for o único que é bom para o menino?

E você olha para aquela mãe, e não há como discutir com aquilo. Não é mais válido achar que o padre, se tiver feito o que se supõe que fez, está errado, do que achar que a mãe dele está certa, e que todo o império de certeza da irmã não faz muito sentido além de machucar e desorganizar o mundo daquelas pessoas.

Mas fica difícil descartar o fato de que o menino é só um menino, mesmo negro e pobre numa sociedade em que nenhuma das duas classes é minimamente respeitada; mesmo em 1964, o menino é só um menino. E se a irmã, mulher e freira, numa sociedade em que não se permite que nenhuma das duas classes levante uma palavra contra o homem superior, pode peitar essa autoridade e buscar justiça, por que a situação do menino não pode ser diferente?

E se o padre realmente for só amigo do garoto?

Não dá pra aceitar essa dúvida. Principalmente porque fazemos – o filme provoca isso – uma analogia com o presente, os nossos dias. E, nossa, não muda muita coisa: a igreja protege praticamente todos os padres pedófilos, estupradores, criminosos mesmo; as freiras servem apenas para dar bons exemplos, não tem voz; os negros não são mais bem respeitados e muita gente prefere não denunciar abusos quando ele vem acompanhado de algum ‘bem’.

Bem, a única coisa de que não tenho dúvida é de que esse filme é maravilhoso, cheio de grandes atuações e grandes sacadas, e que vale muito a pena.