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J. K. Rowling

Rowling escreve ‘O Manifesto das Mães Solteiras’

Não é a primeira vez que a autora J.K. Rowling, mente brilhante por detrás da série Harry Potter, ganha as páginas de um importante jornal britânico para falar sobre muito mais do que o seu universo de magia. O Manifesto pode não ser, para muitos, tão doce quanto à relação entre os Weasley, nem tão amigável como o que acontece entre Harry, Rony e Hermione, ou tão agradável como ler as páginas da ficção de seus livros, mas é a mais pura realidade.

Na edição matinal do The Times, J.K. Rowling escreveu um artigo intitulado ‘Manifesto das Mães Solteiras‘, onde critica o Partido Conservador Britânico, e defende mais uma vez a causa das mães que criam sozinhas suas famílias:

“Entre 1993 e 1997 eu fiz o trabalho de ambos os pais em tempo condicional e, em seguida, trabalhei como professora em uma escola secundária, escrevi um livro e meio e fiz o planejamento para outros cinco. Por um tempo, eu estava clinicamente deprimida. Ser informada, repetidas vezes, que eu era irresponsável, preguiçosa – até mesmo imoral – não ajudou.”

A autora foi a público para alertar a população, “às vésperas das eleições”, ante o comportamento do partido conservador inglês que ainda, em pleno século XXI, considera pais solteiros como aproveitadores, já que no Reino Unido eles recebem uma ajuda de custo do governo enquanto estão desempregados.

Para ler o manifesto na íntegra, clique em continuar lendo.

O Manifesto das Mães Solteiras

Tradução por Cecília e Lorraine Melo

Eu nunca votei no Tory antes, mas… “Aqueles cartazes paródicos, com os seus indivíduos fotogênicos e as suas legendas batidas, me lembram irresistivelmente aqueles cartões de boas festas. Sem dúvida, quanto mais eu penso sobre isso, mais as eleições gerais têm em comum com os aniversários da meia idade. Ambos implicarão em muito barulho indesejável, ambos oferecem incomparáveis oportunidades de congratulação e apesares, e você já viu tantos passarem que muito da excitação se desgastou.

Contudo, eles se tornaram mais significativos, mais sérios. Por trás de todo o estilo bombástico e dos balões existe a consciência melancólica do tempo passando, um registro de ambições conquistadas e oportunidades perdidas.

Então aqui estamos nós de novo, fazendo um balanço de onde nós estamos, e de onde nós gostaríamos de estar, ambos como indivíduos e como um País. Pessoalmente, eu vivo tendo esses flashbacks de 1997, e não é meramente por causa da mais memorável eleição dos últimos tempos. Em Janeiro daquele ano, eu era uma mãe solteira com uma filha de 4 anos, dando aula em meio-período, mas vivendo principalmente dos benefícios públicos em um flat alugado. Onze meses depois, eu era uma autora publicada que tinha garantido um acordo lucrativo de publicação nos Estados Unidos, e comprei minha primeira propriedade: uma casa com 3 quartos e um jardim.

Eu me tornei mãe solteira quando meu primeiro casamento terminou em 1993. Em um golpe devastador, eu me tornei uma figura detestável para certas sessões da imprensa, e um bicho-papão para o Governo de Tory. Peter Lilley, até então Secretário de Estado no DSS (Departamento de Segurança Social), tinha entretido recentemente a conferência da Festa Conservativa com uma imitação da apresentação de Gilbert e Sullivan, onde ele censurou “jovens mulheres que engravidam só para entrar na lista de habitação”. O Secretário de Estado de Wales, John Redwood, apontou famílias de pais solteiros de St. Mellons, Cardiff, como “um dos maiores problemas sociais dos dias de hoje”. (John Redwood tinha se divorciado recentemente da mãe de seus filhos.) Mulheres como eu (para isso é um fato curioso que pais solteiros são retratados como heróis, enquanto que mulheres deixadas segurando seus bebês são difamadas) eram, de acordo com o mito popular, uma causa primária de um colapso social, e nela com tudo que poderíamos conseguir: dinheiro de graça, acomodações financiadas pelo Estado, e uma vida fácil.

Uma vida fácil. Entre 1993 e 1997 eu fiz o trabalho de dois pais em tempo integral e depois trabalhei como professora de escola secundária, escrevi um romance e meio e planejei mais cinco. Por um tempo, eu estava clinicamente depressiva. Ser informada, repetidas vezes, que eu era irresponsável, preguiçosa – até imoral – não ajudou.

A nova vitória esmagadora do partido trabalhista marcou uma cessação das hostilidades do governo para com as famílias como a minha. A mudança no tom de voz foi muito bem-vinda, mas a substância é, claro, mais importante do que o estilo. O partido trabalhista tinha ótimas ambições para a erradicação da pobreza infantil e, embora tenha tido sucesso inicialmente em inverter a tendência decrescente que persistia ininterruptamente desde o governo do Tory, não atingiu os seus próprios objetivos. Resta muito a ser feito.

Isso não quer dizer que não houve inovações reais para ajudar as famílias monoparentais. Em primeiro lugar, os créditos tributários de assistência infantil foram introduzidos por Gordon Brown quando era Chanceler, o que foi uma forma significativa de lidar com o fato de que o maior obstáculo para as famílias monoparentais em retornar ao trabalho não era inato à preguiça, mas à quase impossibilidade de proporcionar uma assistência infantil adequada.

Depois vieram os centros Sure Start, dos quais há agora mais de 3.000 em todo o Reino Unido: centros de serviços onde as famílias com filhos menores de 5 anos podem receber serviços integrados e informação. A menos que você já tenha se beneficiado com ações diferentes envolvidas em habitação, educação e assistência infantil, você não pode apreciar a grande inovação que são esses centros. Eles possuem vínculos com o Jobcentres, oferecendo ajuda para garantir emprego, e dão conselhos sobre a paternidade, cuidados com a criança, educação, serviços especializados e até mesmo de saúde. Um memorando da National Audit Office publicado em janeiro passado constatou que a eficácia geral de 98% da assistência infantil oferecida foi considerada “boa ou excelente”.

Aqui estamos nós, em 2010, com promessas de termos mais uma memorável eleição. Gingerbread (hoje ligada ao Conselho Nacional para Famílias Monoparentais), desejosa de evitar a lama crescente do início dos anos noventa, recentemente encorajou Messrs Brown, Cameron e Clegg a se inscreverem em uma campanha chamada “Let’s Lose the Labels” (Vamos Perder os Rótulos), que visa combater os estereótipos negativos das famílias monoparentais. Aqui estão apenas alguns dos fatos que às vezes se perdem pelo caminho para uma história fácil, ou um discurso político eloquente: apenas 13% dos pais solteiros têm menos de 25 anos, a idade média é de 36 anos. 52% vivem abaixo da linha de pobreza e 26% vivem em habitações “não decentes”. Famílias monoparentais são mais propensas a ter alguém com incapacidade do que famílias compostas por casais, o que dá uma ideia das tensões que uma ruptura familiar causa. Apesar de todos os obstáculos, 56,3% das famílias monoparentais têm emprego remunerado.

Como há 1.9 milhões de votos monoparentais para ganhar, não deveria surpreender a ninguém que os três líderes dos principais partidos políticos tenham concordado em se inscrever para a campanha do Gingerbread. Para David Cameron, no entanto, isso certamente envolve um difícil ato de aceitação.

O manifesto conservador de ontem deixa claro que os membros do Tory visam menos apoio governamental para os necessitados, e mais investimento ao “terceiro setor”: a caridade. Além disso, reitera a política emblemática tão orgulhosamente defendida por David Cameron na semana passada, de que “pregam o casamento”. Para este fim, eles prometem reduzir meio bilhão de libras de impostos para casais de baixa renda, totalizado em 150 libras por ano.

Eu aceito que eu e meus amigos somos atípicos. Talvez você conheça pessoas que se uniriam legalmente a outro ser humano, para a vida toda, por £150 extras por ano? Talvez você estivesse pensando em abandonar um casamento sem amor ou abusivo, mas mudou de idéia quando soube da taxa de £150? Tudo é possível; mas de alguma forma, eu duvido. Até o Sr. Cameron parece admitir que ele não está oferecendo nada mais do que uns trocados quando nos diz que “não é o dinheiro, é a mensagem”.

Ninguém que já experimentou a realidade da pobreza pode dizer “não é o dinheiro, é a mensagem”. Quando seu apartamento é invadido, e você não pode pagar um chaveiro, é o dinheiro. Quando faltam duas moedas para comprar uma lata de feijões cozidos, e seu filho está com fome, é o dinheiro. Quando você se pega pensando em sair de uma loja sem pagar para conseguir fraldas, é o dinheiro. Se o único aviso efetivo do Sr. Cameron para mulheres vivendo na pobreza, as que cuidam solitárias de seus filhos, é “case-se, e nós vamos te dar £150”, ele se mostra completamente ignorante de sua real situação.

Quantos possíveis maridos eu já conheci, quando era a mãe solteira de um bebê, impossibilitada de trabalhar, presa no meu apartamento, noite após noite, com dinheiro suficiente apenas para as necessidades da vida? Eu deveria ter pedido em casamento o jovem que invadiu minha casa pela janela da cozinha às 3 da manhã? Meio bilhão de libras, para passar uma mensagem – não seria mais econômico, mais pessoal, mandar flores a todos os casados de baixa renda?

Sugestões de que o Sr. Cameron parece alheio a como pessoas pobres realmente vivem, pensam e se comportam parecem provocar acusações de guerra de classes. Deixem-me esclarecer, só para constar, que eu não acho que seja muito sua culpa que ele tenha passado sua adolescência de gravata branca e no bem-bom de Eton e que eu tenha passado quase o mesmo período nos uniformes horríveis em amarelo e marrom de Wyedean Comprehensive. Eu simplesmente quero saber que os aspirantes a primeiro ministro se importaram em se educar sobre as vidas de todos os tipos de britânicos, não só os tipos que mandam mensagens com recibos de banco.

Mas espere, alguns vão dizer. Como faz tempo que você deixou de ser mãe solteira e se casou e formou uma família, como agora você está tão longe de ter uma vida dependente de benefícios que a Private Eye normalmente se refere a você como “Rowlinginnit”, por que você se importa? Claro que, hoje em dia, você vota a favor do Tory?

Não, acho que não. Na campanha para as eleições de 2010, mais do que qualquer outra, tem destacado o contínuo abismo entre os valores do Tory e os meus. Não é apenas a nova marginalização dos solteiros, divorciados e viúvos trazendo lembranças muito ruins. Também há a revelação, depois de dez anos de mentiras sobre o assunto, que lorde Ashcroft, deputado líder dos Conservadores, não é domiciliado para pagar impostos.

Agora, eu nunca, nunca esperei me encontrar em uma posição onde pudesse entender, por experiência própria, as escolhas e tentações ao alcance de um homem tão rico quanto lorde Ashcroft. O fato é que na primeira vez que eu encontrei meu contador recém-aposentado, ele me disse sem rodeios: eu iria organizar meu dinheiro ao redor da minha vida, ou minha vida ao redor do meu dinheiro? Na segunda opção, era hora de me mudar para a Irlanda, Mônaco, ou possivelmente Belize.

Eu decidi continuar sendo uma pagadora de impostos domiciliada por algumas razões. A principal delas foi que eu queria que minhas crianças crescessem onde eu cresci, tivessem raízes próprias em uma cultura antiga e magnífica como a britânica; que fossem cidadãos, com tudo o que isso implica, de um verdadeiro país, não expatriados livres, vivendo no limbo de algum refúgio de impostos e se associando com crianças de exílios gananciosos similares.

Uma segunda razão, no entanto, foi que eu me sinto em dívida com o estado do bem-estar social britânico: o mesmo que o Sr. Cameron gostaria de substituir por doações de caridade. Quando minha vida atingiu o fundo do poço, a rede de segurança, por mais desgastada que ela tenha se tornado durante o governo de John Major, estava lá para interromper a queda. Não posso deixar de sentir, no entanto, que teria sido desprezível fugir para as Índias ao receber o primeiro cheque de sete dígitos. Isso, se você gostar, é a minha noção de patriotismo. Com as evidências disponíveis, suspeito que essa seja a idéia de lorde Ashcroft de ser um idiota.

A pobreza infantil continua sendo um problema vergonhoso nesse país, mas ele nunca será resolvido com milhões de libras de isenção de impostos para casais que não tem nenhum filho. David Cameron nos diz que os Conservadores mudaram, que eles não são mais a “festa desagradável”, que ele quer que o Reino Unido seja “uma das nações mais amigáveis para famílias da Europa”, mas eu, sinceramente, não caio nessa. Ele resgatou uma política que fez vidas desesperadas ainda piores quando sua turma esteve no poder pela última vez, e está tentando vender como algo novo. Eu nunca votei a favor do Tory… e eles vivem me lembrando o porquê.

© J. K. Rowling, 2010

Por Bruno Longbottom

está na Potter Heaven há cinco anos, e hoje é editor do site. Corvinal, Jornalista, Cinéfilo apaixonado, não vê testralhos e não sabe voar de vassoura. No twitter, é o @bmaranhas.

2 respostas em “Rowling escreve ‘O Manifesto das Mães Solteiras’”

É sempre bom encontrar um texto da Joanne, seja qual for o gênero. Essa preocupação social por parte dela é um dos fatores que mais me atrai em seus textos. E isso não fica fora de Harry Potter, é claro. Está em tudo quanto ela escreveu.

Bonito ver como ela enfrentou as dificuldades de criar uma filha sozinha. E é super importante que ela participe politicamente desse momento de decisão eleitoral no Reino Unido. Inspira pessoas que atualmente passam pela mesma situação em que ela já se encontrou, como também ajuda a abrir os olhos de toda a gente.

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